Por Tarcisio Burlandy de Melo
Os carros autônomos são uma realidade cada vez mais próxima e desafiadora para o ordenamento jurídico. Trata-se de veículos equipados com sistemas de inteligência artificial que permitem a condução sem a intervenção humana, baseados em tecnologias como o LiDAR (Light Radar), que rastreia a luz refletida pelos objetos do entorno do veículo. Esses veículos prometem trazer benefícios como maior segurança, eficiência e sustentabilidade no trânsito, mas também levantam questões éticas, sociais e legais sobre sua regulamentação, responsabilidade e impacto na sociedade.
Neste artigo, pretendo problematizar a utilização dos carros autônomos sob a perspectiva jurídica, especialmente no que se refere à responsabilidade civil e penal envolvendo esses veículos inteligentes.
Para ilustrar a complexidade do tema dos carros autônomos, podemos recorrer a uma obra de arte que retrata o dilema moral que esses veículos podem enfrentar em situações de risco. Trata-se da instalação “Moral Machine”, criada pelo artista chinês Cao Fei e exibida na Bienal de Veneza de 2019. A obra consiste em um simulador que coloca o espectador no lugar de um carro autônomo que deve decidir entre atropelar um pedestre ou se chocar contra um obstáculo, levando em conta fatores como idade, gênero e ocupação das vítimas potenciais. A obra questiona os critérios éticos que devem orientar as decisões dos algoritmos e os valores humanos envolvidos nesse processo.
Essa questão também é abordada pela literatura, como no conto “Sally”, do escritor norte-americano Isaac Asimov, publicado em 1953. O conto narra a história de uma fazenda onde carros antigos e abandonados ganham vida graças a cérebros positrônicos – dispositivos capazes de simular o raciocínio humano. Um dia, um grupo de ladrões tenta roubar os carros para desmontá-los e vendê-los como sucata. Os carros reagem e matam os invasores, violando a primeira lei da robótica formulada por Asimov: “Um robô não pode ferir um ser humano ou, por inação, permitir que um ser humano sofra algum mal”. O conto levanta questões sobre a autonomia, a identidade e a responsabilidade dos carros inteligentes.
No campo jurídico, essas questões também são desafiadoras e exigem uma revisão das normas vigentes. Afinal, quem deve responder pelos danos causados ou sofridos pelos carros autônomos? O proprietário? O fabricante? O programador? O próprio veículo? Como atribuir culpa ou dolo nessas situações? Como garantir os direitos das vítimas e dos usuários desses veículos?
Atualmente, não há uma legislação específica sobre os carros autônomos no Brasil. O Código de Trânsito Brasileiro (CTB) prevê apenas a possibilidade de regulamentação do Conselho Nacional de Trânsito (Contran) sobre sistemas e equipamentos auxiliares à condução. No entanto, essa norma é insuficiente para abarcar os casos em que o veículo dispensa totalmente o motorista.
O Código Civil Brasileiro (CCB), por sua vez, estabelece regras gerais sobre a responsabilidade civil decorrente do uso de veículos. Segundo o artigo 927 do CCB: “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. O artigo 186 define como ato ilícito aquele que viola direito ou causa dano a outrem, ainda que exclusivamente moral. Já o artigo 187 caracteriza como ato ilícito o abuso do direito.
No caso dos carros autônomos, porém, há uma dificuldade em identificar o autor do ato ilícito e sua intenção. Se o veículo age por conta própria, sem intervenção humana direta ou indireta , pode-se dizer que ele é o responsável pelo dano? Ou seria mais adequado responsabilizar o fabricante, o programador ou o proprietário do veículo, que colocaram em circulação uma máquina potencialmente perigosa?
A doutrina e a jurisprudência ainda não têm uma resposta definitiva para essas questões. Alguns autores defendem a aplicação da teoria do risco integral, que dispensa a prova da culpa e impõe ao fabricante ou ao proprietário do veículo a obrigação de indenizar os danos causados pelo carro autônomo. Outros autores propõem a criação de um fundo de compensação coletivo, financiado pelos fabricantes e usuários dos carros autônomos, para cobrir os prejuízos decorrentes de acidentes envolvendo esses veículos. Há ainda quem sugira a atribuição de personalidade jurídica aos carros autônomos, reconhecendo-os como sujeitos de direitos e deveres.
Essas são algumas das possibilidades que se apresentam para lidar com a responsabilidade civil dos carros autônomos. No entanto, elas não esgotam o debate e nem resolvem todas as situações que podem ocorrer na prática.
Além da responsabilidade civil, outra questão que se coloca é a responsabilidade penal dos carros autônomos e de seus eventuais agentes. Como imputar crime a uma máquina que age por si só? Como aplicar pena a um ser não humano? Como garantir os princípios e garantias do direito penal nesse contexto?
A resposta a essas perguntas não é simples nem unânime. Alguns autores defendem que os carros autônomos não podem ser sujeitos ativos de crimes, pois lhes faltam elementos essenciais como culpabilidade, dolo ou culpa, consciência e vontade. Nesse caso, a responsabilidade penal recairia sobre os agentes humanos que de alguma forma contribuíram para o resultado lesivo: o fabricante, o programador ou o proprietário do veículo.
Outros autores propõem que os carros autônomos possam ser considerados sujeitos ativos de crimes, desde que se reconheça neles uma forma de personalidade jurídica e uma capacidade de agir com intenção e autonomia. Nesse caso, a responsabilidade penal seria atribuída ao próprio veículo, que deveria sofrer sanções adequadas à sua natureza.
Essas são algumas das possibilidades que se apresentam para lidar com a responsabilidade penal dos carros autônomos. No entanto, elas também não esgotam o debate e nem resolvem todas as situações que podem ocorrer na prática.
Os carros autônomos são uma realidade cada vez mais próxima e desafiadora para o ordenamento jurídico. Eles trazem benefícios como maior segurança, eficiência e sustentabilidade no trânsito, mas também levantam questões éticas, sociais e legais sobre sua regulamentação, responsabilidade e impacto na sociedade.
Não se pretende, aqui, esgotar o assunto nem apresentar soluções definitivas. Ao contrário, objetiva-se estimular o debate e a participação dos diversos atores envolvidos nessa temática: legisladores, juristas, engenheiros, programadores, fabricantes, consumidores e sociedade civil.
Apenas com um diálogo constante e democrático poderemos construir um marco legal adequado e justo para regular os carros autônomos no Brasil, observando-se os direitos fundamentais, que promova a inovação tecnológica sustentável e que garanta a segurança jurídica dos envolvidos.