Por Tarcisio Burlandy de Melo 

Você já ouviu falar em blockchain? E em inteligência artificial? Se você não sabe o que são essas coisas, não se preocupe. Você não está sozinho. A maioria dos brasileiros também não sabe. E isso é um problema. Um problema grave. Porque essas são as tecnologias que estão revolucionando o mundo e que vão impactar profundamente a nossa sociedade, a nossa economia e o nosso direito.

Blockchain é uma tecnologia de registro de informação que se vale de uma rede descentralizada, peer to peer (P2P), para gerar consenso entre seus participantes acerca das informações armazenadas e das que se pretende armazenar. Em outras palavras, é uma forma de criar registros confiáveis sem depender de intermediários ou autoridades centrais. É como se fosse um livro contábil público e imutável, onde todos podem ver e validar as transações realizadas.

Inteligência artificial é uma área da ciência da computação que busca criar sistemas capazes de realizar tarefas que normalmente exigiriam inteligência humana. Em outras palavras, é uma forma de fazer máquinas pensarem e agirem como nós. É como se fosse um cérebro eletrônico que pode aprender com os dados e tomar decisões baseadas em algoritmos.

Essas duas tecnologias têm em comum o fato de serem disruptivas, inovadoras e potencialmente transformadoras. Elas podem trazer benefícios incríveis para a humanidade, como aumentar a eficiência, a transparência, a segurança e a inclusão social. Mas elas também podem trazer riscos enormes para os indivíduos, as organizações e os Estados, como violar a privacidade, a propriedade intelectual, a soberania nacional e os direitos humanos.

E qual é o papel do direito nesse cenário? Como ele pode regular essas novas tecnologias? Como ele pode proteger os interesses legítimos dos envolvidos? Como ele pode garantir os princípios constitucionais da ordem jurídica brasileira?

Essas são perguntas difíceis de responder. E ainda mais difíceis de implementar na prática porque o direito brasileiro está despreparado para lidar com esses desafios. Ele está defasado em relação à realidade tecnológica atual, na medida em que está baseado em conceitos ultrapassados e em normas inadequadas.

O direito brasileiro ainda não tem uma legislação específica sobre blockchain ou inteligência artificial. Nosso ordenamento jurídico ainda não reconhece plenamente essas tecnologias como objetos jurídicos relevantes, não tendo definido ainda, de forma clara,  Ele ainda quais são os direitos e deveres dos seus usuários ou desenvolvedores.

Isso gera uma situação de incerteza jurídica e insegurança jurídica para todos os envolvidos nessas atividades.

Para ilustrar essa situação, vamos analisar alguns casos concretos que envolvem blockchain e inteligência artificial no Brasil.

Um caso é o do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict), que tem pesquisado soluções tecnológicas que utilizam essas tecnologias aplicadas a sistemas de informação científica e técnica. Por exemplo, o Ibict desenvolveu uma plataforma baseada em blockchain para gerenciar os dados abertos produzidos pela pesquisa brasileira, garantindo sua integridade, autenticidade e rastreabilidade. O Ibict também desenvolveu uma ferramenta baseada em inteligência artificial para extrair informações relevantes dos artigos científicos publicados no Brasil, facilitando sua recuperação e análise.

Esse caso mostra como blockchain e inteligência artificial podem contribuir para o avanço da ciência e da tecnologia no país, promovendo a inovação, a colaboração e a transparência. Mas também mostra como essas tecnologias podem gerar questões jurídicas complexas, como a proteção dos dados pessoais dos pesquisadores e dos participantes das pesquisas, a propriedade intelectual dos resultados obtidos e a responsabilidade pelos eventuais erros ou vieses dos sistemas.

Outro caso é o da distribuição global de vacinas contra a covid-19, que tem contado com o apoio da tecnologia blockchain para fornecer uma visão precisa do inventário e otimizar a alocação das doses. Por exemplo, a IBM desenvolveu uma solução baseada em blockchain para rastrear as vacinas desde sua fabricação até sua aplicação nos pacientes, garantindo sua qualidade, segurança e eficácia. A IBM também desenvolveu uma solução baseada em inteligência artificial para prever a demanda por vacinas em diferentes regiões do mundo, ajudando a planejar as estratégias de imunização.

Esse caso mostra como blockchain e inteligência artificial podem contribuir para o enfrentamento da pandemia global, promovendo a saúde pública e a cooperação internacional. Mas também mostra como essas tecnologias podem gerar questões jurídicas complexas, como a proteção dos dados sensíveis dos pacientes e dos profissionais de saúde, a propriedade intelectual das vacinas e dos sistemas, a responsabilidade pelos eventuais danos ou efeitos colaterais das vacinas ou dos sistemas.

Um último caso é o do uso de robótica e inteligência artificial nos tribunais brasileiros, que tem como objetivo aumentar a eficiência, a celeridade e a qualidade da prestação jurisdicional. Por exemplo, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem utilizado um sistema baseado em inteligência artificial para auxiliar na triagem e na distribuição dos processos, identificando as matérias jurídicas envolvidas e os precedentes aplicáveis. O STF também tem oferecido cursos gratuitos sobre blockchain e inteligência artificial para capacitar os magistrados e os servidores sobre essas tecnologias.

Esse caso mostra como blockchain e inteligência artificial podem contribuir para o aprimoramento do sistema de justiça no país, promovendo a democratização do acesso ao direito e à informação. Mas também mostra como essas tecnologias podem gerar questões jurídicas complexas, como a garantia do contraditório e da ampla defesa dos litigantes, a preservação da independência e da imparcialidade dos julgadores, a definição dos limites e das condições de uso desses sistemas.

Esses são apenas alguns exemplos de casos concretos que ilustram o potencial e os problemas das novas tecnologias que envolvem blockchain e inteligência artificial no Brasil. Mas há muitos outros casos possíveis e imagináveis que poderiam ser mencionados.

O que todos eles têm em comum é que eles exigem uma resposta adequada do direito brasileiro. Uma resposta que seja capaz de acompanhar o ritmo acelerado das mudanças tecnológicas. Uma resposta que seja capaz de equilibrar os interesses divergentes dos atores envolvidos nessas atividades. Uma resposta que seja capaz de garantir os valores fundamentais da ordem jurídica brasileira.

Mas como construir essa resposta? Como criar um marco regulatório para as novas tecnologias que envolvem blockchain e inteligência artificial no Brasil?

Essa é uma pergunta difícil de responder, pois envolve diversos aspectos técnicos, jurídicos, sociais e éticos. Mas há alguns passos que podem ser dados nesse sentido.

Um passo é o de acompanhar e participar dos debates que estão ocorrendo em âmbito nacional e internacional sobre o tema. Por exemplo, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) tem coordenado a elaboração da Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial (EBIA), que visa definir as diretrizes e as ações para o desenvolvimento e a aplicação da inteligência artificial no país. A EBIA está aberta à consulta pública até o dia 31 de março de 2023.

Outro passo é o de conhecer e analisar as propostas legislativas que estão tramitando no Congresso Nacional sobre o tema. Por exemplo, a Câmara dos Deputados aprovou em setembro de 2021 o Projeto de Lei nº 21/2020, que estabelece os fundamentos, os princípios e as diretrizes para o uso da inteligência artificial no Brasil. O projeto segue agora para análise do Senado Federal.

Um terceiro passo é o de estudar e aplicar os marcos regulatórios já existentes que se relacionam com as novas tecnologias. Por exemplo, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), que entrou em vigor em setembro de 2020, regula o tratamento dos dados pessoais dos indivíduos pelos agentes públicos e privados que utilizam sistemas baseados em blockchain e inteligência artificial.

Esses são alguns exemplos de passos que podem ser dados para construir um marco regulatório adequado para as novas tecnologias que envolvem blockchain e inteligência artificial no Brasil. Mas há muitos outros passos possíveis e necessários que poderiam ser mencionados.

O importante é reconhecer que esse é um processo dinâmico, participativo e colaborativo, que requer o envolvimento de todos os atores interessados nessas atividades, sejam eles governamentais, acadêmicos, empresariais ou sociais.

Somente assim será possível criar um ambiente jurídico seguro, estável e favorável ao desenvolvimento sustentável dessas tecnologias no país.